Coluna  Amaral Cavalcante 

Faz dois meses que o bichinho chegou à minha cozinha e estabeleceu sua quitanda na lixeira. De dia desaparece, mas toda noite ele volta mais ousado atacando a cesta de frutas, roendo as bananas, furando o mamão, mutilando as maçãs, revirando o lixo com meticuilosa esculhambação. Depois, cuida de cagar em volta umas bolotinhas chinfrins, marcando o espaço do seu dominio. O safado come o que quer e depois se vai, sariguê refestelado, dormir na gaveta de gordura do meu fogão.

Por duas vezes tentei levá-lo para longe, já que matá-lo não é cogitável. Ele volta, não aceita o despejo. Da última vez deixei-o nos mangues do Bar Mineiro, uma Atalaia-e-meia longe daqui. Pois não é que o pestinha voltou ao meu fogão? É mole? Todo dia, pela manhã, tenho que limpar o fogão com álcool e desinfetar a cozinha, numa teima de difícil solução.

Acredito que essas coisas me acontecem por carma. Sabe aquele papo oriental de faturas mal pagas em vidas anteriores? Pois eu acredito nelas. Cuidar de gente mal agradecida é minha sina. Aliás, seres muito mais danosos que este rato punk já habitaram o meu fogão, com excelentes resultados afetivos. Que dirá um Sariguê que só tem de maldade o fedor?

O Sariguê tem um truque espetacular: quando tocado, se faz de morto. Cai de lado, duro e fedorento, juntando as patas em volta do nariz em compungida prece. Dá até pena. Inerte, é de se fazer dele gato e sapato. Noutro dia, munido de guardanapos e carontonhas de nojo, agarrei-lhe o rabo e consegui expulsa-lo da cozinha. Deixe-o num lugar longínquo em que a sobrevivência lhe seria leve. E me esqueci dele.

Hoje, ao vê-lo de volta, aproveitei para conhecê-lo melhor, vencida a gastura que me sobe em arrepios. É um rato elegante com aquele pimpão espetado que atualmente faz moda no ataque do Santos Futebol Clube. Tem um olhar noturno, buliçoso, triste e meio esfomeado. O rabo pênsil é difícil de esconder, o longo nariz atravessado por duas tarjas pretas que vão do olho à inquieta ponta do nariz. Um narigão aonde, por certo, veio a se instalar o cheiro do meu fogão, a deliciosa podridão do meu lixo, a permissividade da cozinha largada aos descuidos da minha solteirice. O danado estabeleceu nela a garantia da sua sobrevivência.

Tenho, então, uma complicada decisão a tomar: ou o ignoro, ou pego o bicho e o devolvo aos pastos, o mais longe possível de mim lá pras bandas de Propriá, de onde ele poderá se aventurar pelas Alagoas e de lá rumar para telhados mais promissores nas cozinhas destes Brasis.

Será ecologicamente correto mantê-lo aqui, cagando diuturnamente no meu fogão e comendo vorazmente as frutas que eu escolho, semanalmente, nas gôndolas do supermercado?
Eis minha grande questão: que fazer com esse bicho bonitinho que a santidade achou por bem me destinar?

Remeto a você, leitor, esse meu doméstico problema.