Tio Marcos, que ainda hoje reside em um sítio no município sergipano de Arauá, terra natal do meu avô materno, trata-se de uma figura singular. Pessoa de razoável cultura e de papo variadíssimo, fato que tornou a sua morada bastante frequentada pelos que gostam de uma conversa despretensiosa e disponível a toda hora, conseguiu a façanha de perder o cargo efetivo de servidor da Receita Federal em Salvador por faltar ao trabalho. Acredito que na história da Bahia deve ser o único caso.

 

Outra faceta de tio Marcos é a capacidade de elaborar ações e empreendimentos fantásticos de todos os matizes, os quais raramente saem do plano das idéias, peculiaridade que certa feita ensejou um pedido de audiência feito pelo ficcionista sergipano Francisco J. C. Dantas, a fim de ajudá-lo a compor uma personagem sua com características similares.

 

Como já havia adiantado, deitado em sua estimada rede, recebe Tio Marcos diariamente na varanda da sua casa os amigos que para lá convergem, onde palestra com os seus interlocutores e ouvintes sobre os mais diversos assuntos. Tachado de excêntrico por muitos, algumas de suas estórias tornaram-se motivo de chacota por parte de quem as conhece.

 

Uma das estórias amiúde comentada, a propósito, trata-se do desafio que ele lançou para o “Tinhoso”.

 

Segundo tio Marcos, se houvesse a oportunidade de se encontrar com o “Encardido”, iria ele convencê-lo de que a sua opção pelo mundo das trevas não se revelava correta. Assim, ao ser indagado sobre o tema, não raro por quem o fazia em tom de deboche, falava e ainda fala eloquentemente sobre o rosário de argumentos que iria esfregar no focinho do “Cramunhão” quando da peleja, intercalando a sua oratória com a afirmação de que estava a qualquer hora disposto a enfrentá-lo, inclusive no território adversário.

 

Manuel, meu irmão de dois sangues, tem medo de alma. Mas não é um medo comum desses que sofremos quando assistimos algum filme assombroso. É um medo recorrente de quem não tolera nem tocar no assunto. Boas passagens existem de Manuel. São dois personagens antagônicos. Tio Marcos e Manuel. Manuel evitava ficar a sós com tio Marcos à noite, sobretudo dividir o mesmo quarto na fazenda de meu avô, receando, pois, a desventura de ter que testemunhar o encontro.

 

Há alguns anos, no entanto, estava tio Marcos à noite na varanda da sua casa diante de uma numerosa platéia, onde mais uma vez encontrava-se a discorrer entusiasmadamente sobre o eventual embate, certamente instado por algum debochado presente.

 

Em tal oportunidade, sua calorosa fala foi interrompida por um sonoro trovão que roncou no horizonte, tendo em seguida um dos presentes bradado do meio da assistência: “Óia ele chegando!”. Ato contínuo, tio Marcos, sem se levantar da sua inseparável rede, voltou os olhos para o lugar de onde surgiu o estrondo, a fim de ver se o “Pé Preto” havia, de fato, finalmente aceitado o desafio, tendo, contudo, decepcionado-se com a constatação de que se tratava apenas de um evento da natureza.

 

Ao se dirigir novamente para a assistência, verificou, porém, que todos em um ato de bravura haviam disparado em desabalada carreira, inclusive os gaiatos que suscitaram a estória.

 

Daniel