Coluna  Amaral Cavalcante 

Ontem, de tardinha, visitou-nos um periquito australiano. Veio disfarçado de andarilho e foi se chegando quando alguém regava o jardim da frente. Pediu água, bebeu um tiquinho, agradeceu com mesuras e deu pra fazer graça, abrindo as asas para o esguicho da mangueira e espanando água ao derredor. Parecia de casa.

Como já batia a sagrada hora do cuscuz, convidei-o a entrar, estendendo-lhe um galho seco do pé de arruda que tenho no quintal, matutando sobre os benefícios daquela planta macumbeira, boa para quebrar encantos e expulsar mal querências.

Vai que é arte do cão!

Mas que nada! Ele aceitou faceiro o singelo convite e, com um pulinho certeiro, abancou-se no galho.

A casa, imediatamente, virou-se em cuidados e salamaleques, todos nós ocupados com a visita, um bichinho encantador, tão pequeno e tão leve, com tanta personalidade.

Que será que ele come, será que toma café? E vai dormir onde?

Comeu que ficou bronco: arroz, semente de girassol amassada e farofa de bolacha Cream Cracker, levadas até o seu minúsculo bico na palma da minha mão. Bicadinhas leves, naturais, vindas da mais delicada mansidão interior. Depois, num copinho de tomar pinga, bebeu água e arrotou com certo espalhafato, o que comprovava o grau de confiança entre ele e os seus anfitriões.

Ontem à noite, só ele conseguiu dormir nesta casa abençoada! Vez por outra alguém se levantava, pé-ante-pé até a biblioteca para ver se o galho, enfiado entre os livros, ainda estava ocupado. Lá estava ele, indiferente aos chamegos domésticos, não se abalava nem com a nossa chatice ao tentar acordá-lo com toisinhas binitas, na língua dos bebês. Tunco! E enfiava o bico no próprio cangote, como gostam de dormir os periquitos.

Cinco horas da manhã cantava estridente, solicitando a nossa atenção. Queria comer. De novo lá vou eu com a palma da mão, aproveitando-me da sua confiança para tocar com a ponta dos dedos naquela imponente coisinha viva. liberta de compromissos e preocupações que estava ali, mas podia ir-se embora quando bem quisesse, sem carregar saudades nem gratidões.

Foi-se no começo da tarde, quando já havíamos comprado comida apropriada no mercadinho e já engendrávamos planos para conte-lo entre nós.

Subiu na minha mão, deu umas corridinhas pelo braço, depois voltou ao galho de arruda e inventou uma dancinha de baile funk com o rabo balançando agoniado e voou para o sol da tarde.

Como se vê, nada de extraordinário aconteceu, mas a poesia tem dessas coisas.

Amaral Cavalcante