Começou a ouvir o toque insistente do telefone cada vez mais alto. Passou a travar uma
batalha com o sono que o dominava. Perdeu o primeiro o round. Novamente voltou o
barulho e reconheceu o toque do seu celular. Reuniu as forças que ainda lhe restavam e
saiu tateando o criado mudo à procura do aparelho. Atendeu sonolento:
– Alô! – falou ainda zonzo de sono.
– Que voz de sono é essa, cara?
Reconheceu a voz do amigo e sua peculiar animação.
– Rapaz, ontem passei a noite enxugando umas garrafas de vinho, não sei quantas bebi e
nem a que horas fui dormir. Estou morto… Fumei e bebi como se não houvesse
amanhã…
– Pois tome uma banho e se arrume, que eu estou passando aí em meia hora para a
gente sair para a farra.
– Eu tomei todas e é você quem acorda bebão. Tá maluco?! Já estamos há dois meses
em quarentena e você vem com essa de “sair para a farra”. Bem que eu gostaria…
– Você não soube da entrevista do Ministro da Saúde? Está em todos os sites. Foi
anunciado um tratamento infalível contra o Corona e com remédios que em toda farmácia
de esquina se encontra. O Governador já anunciou que a porra da quarentena acabou!
– Deixa de brincadeira, cara, tá pensando que eu vou cair nesse trote? Vá tomar no miolo
do seu cu, porra!
– Não é brincadeira, não. Estou passando aí em meia hora.
– Vá se lascar!
Terminada a ligação e por via das dúvidas, resolveu dar uma conferida nos sites e leu
logo a manchete em um dos sites de notícia mais prestigiados da cidade:
“GOVERNADOR DECRETA O FIM DA QUARENTENA!”. Confirmou a notícia. Um
tratamento foi descoberto na Inglaterra com o uso de medicamentos de fácil acesso.
Ainda sonolento se deu conta de que estava na casa da sua mãe, para onde havia se
dirigido a fim de fazer-lhe companhia durante alguns dias da quarentena. Foi até o local
onde ela costumava guardar os medicamentos mais corriqueiros e verificou a presença de
um razoável estoque dos remédios milagrosos. Conferiu logo a validade e viu que
estavam em perfeitas condições de uso. Procurou a mãe pela casa, mas constatou que
estava sozinho. Concluiu que ela não havia resistido à notícia e já tinha ido bater perna
pela cidade. Coitada. Estava mesmo agoniada de ficar tanto tempo em casa. Ninguém
nunca imaginou que poderia passar por isso. Parecia um filme ficcional de tragédia.
Resolveu ligar para o amigo:
– Diga, porra, já está pronto?
– Rapaz, é verdade mesmo! Puuuuuta que pariiiiiiiiiiiiiu! A ressaca até já passou. Você está
pensando em ir para onde?
– Já tem festas programadas pela cidade. Vai ter uma no Mercado Central e outra no
Calçadão da 13 de Julho. Vamos para a 13, né? Trio elétrico e as porra toda. Mano veio, o
que vai ter de xibiu piscando lá não é brincadeira. Tudo doido para tirar o atraso! Vai ser
mais fácil do que pescar de bomba. Vou levar um estoque do azulzinho porque hoje eu
vou furar até cair o couro. A chibata depois vai ter que ficar sustentada na tipoia. Quer
uns?
– Traga o que você tiver. Viagra, Engov, Imosec o caralho a quatro. Passe aqui logo que
eu já estou virado no cuscuz. Escute… estou na casa de Minha Mãe aqui na Aruana. Dá
pra passar aqui?
– Claro! É até melhor, pois a 13 deve estar uma doideira de carros. Chego aí em no
máximo 30 minutos. Vou de Uber.
– Fechado! Um abraço e seja fiel ao horário desta vez, Jorge Pontual, que eu estou que
nem cavalo preso em baia perto de égua no cio. Vou marcar as 16h em ponto.
Desligou o telefone e riscou para o banheiro. Vestiu uma roupa já usada e não quis nem
pensar em passar em casa para pegar uma limpa. Esquentou um resto de lasanha no
micro-ondas e engoliu em poucas garfadas. Tomou logo depois dois comprimidos de
Engov, para garantir, mandou uma mensagem de WhatsApp para a mãe avisando que
sairia e ficou esperando o amigo.
Meia hora depois, conforme o combinado, buzinou na porta um Fiesta preto. Viu o amigo
no banco do passageiro da frente. Ao entrar no carro, não perdeu a oportunidade de tirar
uma chinfra:
– Este dia vai ficar marcado na história por dois fatos: o fim da quarentena e a primeira vez
que você chegou a um compromisso no horário combinado. Será lembrado in seacula
saeculorum, amém!
– Vá tomar no cu, porra! Lá vem você com essa maricagem de que eu não cumpro
horário. Eu sempre chego no horário combinado.
– Eu sei, de quarenta minutos a uma hora e meia depois. Nem mais nem menos.
– Vá se foder, viado!
– Rapaz, não acredito que esta porra acabou. Já estava deprimido com essa falta de
perspectiva.
– Vamos simbora que o dia, a noite, a madrugada e o dia de amanhã prometem. Foi
decretado feriado. O couro vai comer, papai!
– Eu só não vou para o Mercado porque tenho que aproveitar para diminuir o prejuízo.
Dois meses sem rodar não é mole não, chefe. – participou o motorista do papo, para fazer
jus aos seus colegas de profissão.
A cidade estava diferente. Carros buzinando, gente reunida em volta de “paredões” com o
som nas alturas. Quanto chegou nas proximidades do Parque dos Cajueiros o trânsito
parou. Não se conseguiu andar mais.
– Pontual, acho melhor a gente descer aqui e ir a pé. Que tal?
– É melhor.
Pegou uma nota de R$ 50,00 da carteira, entregou ao motorista, agradeceu e desceu do
carro.
– Está generoso hoje, hein? O fim da quarentena conseguiu a proeza de abrir essa mão
de gengibre. – devolveu a chinfra o amigo.
Uma romaria de gente já se dirigia para a 13 de Julho. Quando chegaram na altura do
Parque da Sementeira viu a multidão. Nunca tinha visto tanta gente assim ali, nem no Pré
Caju. A única vez que viu uma comemoração daquela foi na final da Copa de 1994. O
clima era de um carnaval fora de época e espontâneo. Compraram duas cervejas a um
ambulante, brindaram e deram uma farta golada. Que cerveja gostosa em meio àquele
ambiente de verdadeiro êxtase. Lembrou-se do samba enredo que dizia: “Liberdade,
liberdade! Abre as asas sobre nós”. De fato, as portas dos presídios em que se
transformaram os lares foram abertas. Ter a liberdade devolvida e ainda escapar com vida
da peste não poderia causar reação diferente na população. Era um carnaval com reais
motivos para ser celebrado. A tarde estava com um céu limpo e azul. Não poderia ser
mais perfeita.
Enquanto passavam pelas proximidades da ponte Godofredo Diniz, uma mulher abraçou
o amigo e lhe tascou um beijo na boca. Uma verdadeira colada. Depois saiu saltitante. Ele
piscou o olho e disse:
– Já começou bem.
– Quem é essa dona?
– Sei lá, nunca vi…
– Quem tem para raio para mulher feia é você.
– Qual é mulher feia? Só porque é gordinha e estava com o desodorante vencido? Deixe
de implicância! Você já pegou coisa pior e pagando.
Deram uma gargalhada e já compraram outra rodada, pois a cerveja estava descendo
mais fácil do que água.
Foram caminhando com dificuldade pela avenida tomada pelo povo. Durante o longo
trajeto, encontrou-se com gente que não via há anos, colegas do primário, da
adolescência, da faculdade. Era cada abraço entusiasmado que não deixavam
transparecer qualquer alteração na estima provocada pelos vários anos desde o último
encontro. Chegaram ao primeiro trio elétrico, que estava estacionado antes da Avenida
Francisco Porto. Compraram mais uma rodada de cerveja e ficaram por lá apreciando a
festa. De repente, o amigo é surpreendido com um novo beijo. Uma outra gordinha. Sua
ex-esposa. Ele deu um sorriso amarelo, trocou algumas palavras com ela, se virou e
disse:
– Vamos sair daqui.
– Peraê, rapaz, logo agora que vai rolar um flashback.
– Vamos, porra, eu conheço a peça quando está bêba. Vai dar merda…
Conversou um pouco com a ex do amigo para não se mostrar antipático e, também, para
não perder a chance de vê-lo agoniado, pisando em ovos. Se dirigiram, depois, para o
segundo trio, que estava posicionado perto do Mirante da 13. Recordou-se do finado
Mirante Beer, bar que frequentou muito até repentinamente fechar.
A cerveja continuava descendo feito água. Resolveram ficar por ali, a noite caiu e no trio
já estava a tocar a segunda banda. A festa não dava nem sinais de acabar. Após mais
umas cinco rodadas, o amigo engrenou um papo com outra gordinha e pelo andar da
carruagem prometia. Depois de um tempo se aproximou e disse:
– Estou tentando comer essa colega do trabalho há um tempão. De hoje não passa.
– Bem logo vi. Essa atende aos seus padrões de qualidade.
– Vá se foder! Estou indo amar. Amanhã lhe passo a resenha. Me ligue para a gente se
encontrar. Eu hoje só paro depois de amanhã.
– Vá com Deus, Don Juan da Fat Family.
Ele deu o dedo, mandou um beijo com a mão e foi embora.
Resolveu comprar mais uma cerveja. Quando encostou no isopor de um ambulante se
deparou com uma loira familiar. Uma antiga colega do colégio. Ela sorriu ao reconhecê-lo,
embora não se vissem há muitos anos. Tinha sido apaixonado por ela, mas nunca teve
chances. Estava naturalmente envelhecida pelo tempo, mas ainda conservava a beleza
da juventude. Era uma quarentona de respeito. Começaram uma conversa, ela disse que
estava separada do segundo marido, que trabalhava na empresa da família e o papo
prosseguiu animado. Ele aproveitou o ambiente festivo, que já estava com a dose
alcoólica no ponto da animação, verdadeiramente no grau, e, sem hesitar, para não
perder a coragem, disse:
– Eu era apaixonado por você na época do colégio, sabia?
– Sabia. Todo mundo da sala sabia quem gostava de quem.
– Você continua linda. O tempo só fez realçar a sua beleza.
Ela sorriu e disse:
– Você está do mesmo jeito.
– Pensei que você iria retribuir o elogio.
– Mas isso foi um elogio.
Ele pensou, é agora, colocou a mão esquerda na nuca da garota e lhe tascou um beijo, o
qual lhe foi prontamente retribuído. Uma colada daquelas. Abriu a porteira e começou
uma sequência cinematográfica. Compraram mais umas cervejas e, depois de um tempo,
ela lhe disse:
– Eu moro aqui perto e os meninos estão na casa dos avós. Quer ir para lá para a gente
ficar mais à vontade?
– Só se for agora! Now!
Atravessaram o canteiro e seguiram pela pista de baixo rumo a um prédio nas ruas de
trás da Beira Mar. Mal podia acreditar que estava abraçado à sua musa da adolescência.
A chibata já pulsava em riste dentro da cueca em um alvoroço só. Passou a mão no bolso
esquerdo para conferir o comprimido azul gentilmente cedido pelo amigo. Hoje vou dar
espetáculo, pensou. Chegaram finalmente ao prédio. A toração já começou no elevador.
Deu mais uma colada, enquanto a mão esquerda segurava a lata de cerveja, atrás da
nuca da beldade, e a direita passeava em ato instintivo de reconhecimento. Pressionava o
corpo dela na parede do elevador de modo a deixar evidente o seu estado de ânimo e de
atiçar o desejo. Como diria um conhecido apresentador: loucura, loucura, loucura!
Ao entrarem no apartamento, mais uma sequência de coladas. Já estavam no ponto.
Pediu licença e foi até o lavabo. Tirou a cartela do bolso, destacou o comprimido, botou na
boca, deu mais uma golada na cerveja para ajudar a engolir e, depois de uma mijada
generosa, partiu literalmente para o abraço.
Chegaram no quarto amplo, bem decorado, onde uma cama de casal já os aguardava.
Meu Deus, pensou, quem imaginaria que hoje me livraria da quarentena e ainda
terminaria o dia nos braços da minha musa da adolescência. Se fossem juntadas todas as
punhetas batidas na sua intenção daria para encher uma caixa d’água de 3.000 L. Se
jogaram na cama, a ânsia deles era tamanha que em meio aos beijos calientes saíram
rolando até caírem, tendo ele batido a cabeça no chão.
Ficou meio atordoado e, ao olhar para cima, foi tomado de susto ao ver o vulto da sua
esposa.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou ele.
– Lhe derrubando da cama para você acordar! Levante e venha me ajudar, porque não
tem empregada aqui nessa quarentena para limpar a casa, não.
– Chame a diarista para vir amanhã. A quarentena já acabou.
– Acorde, meu filho, só se for no seu sonho. Tem muita quarentena ainda pela frente.
Chegue. Você ficou de lavar os banheiros