Quase sempre que concedo entrevistas sobre a dança, me perguntam sobre a recente explosão da dança do ventre e ao que se deve esse aumento. Para quem não é do meio da dança, parece que a prática da dança árabe nas escolas e academias cresceu exponencialmente em pouco tempo. No entanto a procura e a prática dessa dança apresenta certa constância há alguns anos, e com exceção do “bum” realmente oportunizado pela novela “O Clone”, demonstram que ela não é só uma moda, mas veio para ficar.

O Egito, o grande centro de referência para a dança em pauta, reconhece que as melhores bailarinas do mundo, depois das próprias egípcias, são as brasileiras. Então, se nós, brasileiras, já somos grande praticantes de dança oriental a ponto de sermos reconhecidas internacionalmente, fica o questionamento: como e porquê nos tornamos tão boas nessa arte? Minha hipótese é que de acordo com nossa herança cultural, temos uma certa aptidão memética para isso (meme é um conceito criado similarmente ao gene, tendo este último como replicador de informações biológicas, o meme vem a ser o replicador de informações culturais).

Observando a história, os árabes estiveram presentes na Península Ibérica e deixaram lá notável vestígio que pode ser visto na arquitetura, culinária, linguagem, no Flamenco e em outros segmentos; uma cultura árabe imbricada na ibérica. O ibéricos vieram para o Brasil e trouxeram um conjunto de elementos que aqui podem ser vistos em semelhantes séries culturais; uma cultura ibérica imbricada na brasileira.

A cultura árabe no Brasil pode ser vista nos pátios internos de lá que aqui se aclimataram e se tornaram varandas, nos chafarizes das praças e nas treliças das janelas, nos azulejos das casas e nos ladrilhos hidráulicos coloridos, no cuzcuz e na qualhada, nas palavras “alface” e “alcova”. Em nossa tradição patriarcal também observamos a presença árabe. Nosso machismo tradicional exige que a mulher, esposa e filha, fique reclusa ao lar, numa ótica semelhante à do harém enquanto ambiente íntimo e restritamente familiar da casa árabe. Nas manifestações culturais há o aboio, um canto profundo de ascendência árabe, entoado pelos vaqueiros, cuja semelhança pode ser ouvida também no canto jondo do Flamenco.

Vemos a presença dos ciganos nesse contexto, que, como os árabes, se fizeram presentes na Península Ibérica, e têm presença rica lá até hoje. Assim como os árabes, que foram expulsos da região após a tolerância inicial garantida com a queda de Granada, os ciganos também foram inicialmente tolerados até começarem a ser gradualmente tidos como indesejáveis e a ser banidos e degredados para o Brasil. Como se tratavam de apátridas e não tinham para onde serem deportados em retorno, como foi o caso dos árabes, que voltaram para o norte de África, a idéia da Espanha foi expulsar para Portugal e Portugal teve que expulsar para o além–mar.

No entanto, desde antes das expulsões começarem a ocorrer propriamente, árabes, ciganos e também judeus, compartilhavam uma comunidade apartada da sociedade católica oficial, trocando entre si valores culturais, que propiciou a emergência do Flamenco no século XIX. As Ordenações Filipinas que vigoraram em Espanha e Portugal se referiam a ciganos, armênios, árabes, persas e mouriscos de Granada como se fossem todos “farinha do mesmo saco”.

Mas, se os árabes vieram para o Brasil durante a colonização como séries culturais, os ciganos vieram como seres viventes, e uma vez aqui, frequentemente vagavam para lá e para cá, distribuindo memes para quem quisesse se apropriar. Aliás, os ciganos sempre se dedicaram à dança até mais do que os árabes. Trazendo outra lembrança histórica, as gawazee, ciganas egípcias, foram as principais responsáveis pelo desenvolvimento e perpetuação da dança oriental no Egito. Sem elas, nem as egípcias seriam as primeiras do mundo!

Sou sergipana e cresci ouvindo histórias sobre a “moura torta” e que o povo de Cedro eram um “bando de ciganos”, demonstrando que a presença deles, de uma ou de outra forma, se fez presente aqui também.  Mas ainda mais significativo em nosso estado, temos a Praça São Francisco em São Cristóvão, um conjunto arquitetônico reconhecido internacionalmente como um símbolo da União Ibérica. Em Laranjeiras há a Chegança, liderada pelo meu colega de Conselho Zé Rolinha, que encena a luta entre mouros e cristãos. Ainda na cultura popular de Sergipe vemos o Parafuso em Lagarto com uma incrível semelhança com a dança sufi dos dervixes: ambas são praticadas por homens, de saias, que podem subir até o pescoço, com o chapéus cônicos compridos com formatos similares, e em giros contínuos em ambos os sentidos.

Essas e ainda outras informações culturais herdadas historicamente, têm facilidade em dialogar com os elementos da dança oriental, que, por serem culturalmente similares, possuem vários pontos de contatos. Elas traçam caminhos comuns entre nossos corpos e o ambiente que nos abriga. Assim, em nós mesmas também estão inscritas informações, herdadas historicamente, reveladas em nossos próprios movimentos, como “sotaques” carnificados. Isso tudo, além de explicar a facilidade e aptidão da brasileira em executar a dança oriental permite até em se falar em legitimidade de praticá-la, como brasileiras, e sergipanas, herdeiras da dança do ventre. O dia 25 de março, dia da presença árabe no Brasil, está aí também para celebrar essa história.

 

Por Cecilia Cavalcante
Mestre em Dança, bailarina, coreógrafa e professora de dança, diretora do Portal Hanna Belly, membro titular do Conselho Estadual de Cultura.
Foto: Neu Fontes
Obs: Publicado originalmente no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, 23 a 25 de março de 2019 – Ano XLVIII – N. 13.856, Caderno A7