Levo a vida me guiando em ensinamentos que vem da minha mãe Susete, e principalmente das filosofias da minha bisavó Noemi Bandão. Ela sempre me dizia:
– Não guarde nenhuma informação que precisa ser dita e nenhuma mágoa que não precisa ser sentida.
No começo dos anos 90 em Recife, o diretor de programação da Rede Globo nordeste, José Dias Raposo, criou o Canta Nordeste, um festival de música brasileira que tinha o intuito de divulgar a música nordestina.
O festival com característica regional abria a oportunidade para todos os estados da região participarem com inscrições de compositores nordestinos. O problema maior era que o festival acontecia em Pernambuco. Quem escolhia as músicas era uma comissão pernambucana e assim, os classificados em sua grande maioria eram pernambucanos.
Sergipe teve presente em todas as edições do Canta Nordeste e participações muito importantes. Em 1991, no primeiro ano do festival, classificaram de Sergipe “Língua Mãe”, música de Neu Fontes e Alexi Pinheiro, e “Bocaina” de Doca Furtado.
Nas duas primeiras edições sempre tivemos participações de sergipanos nas eliminatórias do Canta Nordeste, mas sem resultados empolgantes. A concorrência com os pernambucanos era grande e tudo acontecia em Pernambuco. Basicamente os vencedores eram pernambucanos: Israel Filho, Cristina Amaral, Petrúcio Amorim, Maciel Melo, entre outros importantes e talentosos artistas.
No final de 1992 estive na TV Sergipe, fui dar um abraço de natal e ano novo aos amigos Wanderley de Jesus, Laminha e Luís Carlos Campos. No bate papo surgiu um comentário sobre o Canta Nordeste, aí aproveitei e dei minha opinião. Sugeri que o festival fosse regionalizado de verdade, com fases classificatórias nos estados e selecionar duas músicas de cada estado para disputa das semifinais e final. Seriam 18 canções, com cada estado do Nordeste colocando dois representantes. Seria muito mais justo e teríamos uma maior divulgação na região toda.
O Wanderley de Jesus, na época coordenador de programação da TV Sergipe, topou na hora, mas disse que o problema seria convencer Raposo e a Bahia.
A Globo Bahia não tinha participado das edições anteriores. Na minha cabeça a primeira questão era: Por que a Bahia não participou das primeiras edições? Será pelo mesmo motivo da forma injusta de participação? Ou por que era um festival organizado por Pernambuco e não pela Bahia? A outra questão foi se teríamos força para propor esse formato para Raposo, o poderoso da regional da Rede Globo?
O Wanderley ficou de conversar com o Wilson Carneiro, que na época era diretor de programação da TV Bahia, e eu de montar o projeto para entregar a Regional da emissora.
Desde a primeira edição, que o Jesus foi designado a ser o coordenador geral do Canta Nordeste em Sergipe e na mudança de formato, sendo a figura principal, descobriu que a Bahia não participava pois achava injusta a forma de escolha e a realização ser só em Pernambuco.
Jesus então, bolou uma estratégia com o Wilson e o projeto chega na reunião de pauta das unidades da Rede Globo nordeste como proposta da Bahia e de Sergipe. Com o apoio das demais filiadas, o projeto foi aprovado e daí por diante surge o novo Canta Nordeste. A primeira grande vitória de Sergipe no festival e com justiça, uma vitória de Wanderley de Jesus.
Com a decisão da realização em cada estado de uma eliminatória do festival, fui convidado pelo Wanderley de Jesus e por Luis Carlos Campos a fazer a coordenação artística e musical da fase sergipana.
Com o total apoio da TV Sergipe, fizemos uma divulgação sem igual e o resultado não poderia ser melhor, foram mais de 700 músicas inscritas, um novo recorde do festival. Nenhum estado do Nordeste teve essa quantidade de inscritos.
Entre os classificados, estavam: Ismar Barreto e João Alberto, Gil Castro, Rubens Lisboa, Emanuel Dantas, Jad Moreno, entre outros.
Ao ouvir as músicas como coordenador artístico e musical, detectei algumas canções que podia agradar ao público do festival e aos jurados. Entre elas, se destacava as músicas: “Coco da Capsulana” de Ismar e João Alberto, “Noiva do Sol” de Emanuel Dantas, “Canta Nordeste” de Rubens Lisboa, e “Abram Alas” de Gil Castro.
Fiz uma sugestão ao Ismar para que ele convidasse a cantora Amorosa para interpretar o Coco. Ele me disse que gostaria de cantar a música, mas depois de alguns argumentos meus, do João Alberto e do Jesus, o Ismar fez o convite. O resultado todo mundo conhece, Amorosa ganhou a eliminatória dando um show de interpretação que empolgou a todos, inclusive o diretor regional, Raposo, que convidamos para ser jurado. Além disso, a música de Gil Castro, “Abram Alas”, fechou a nossa dupla de representantes.
A semifinal e final foram em Recife, na praia de Boa Viagem, onde foi montado uma estrutura gigantesca. Aí vem a segunda vitória de Sergipe. José Raposo acompanhou de perto a nossa eliminatória e colocou em práticas vários dos nossos formatos como a banda base, a forma de pontuação, de disposição de palco, até o texto de abertura foi exatamente o nosso, escrito pelo autor, diretor e ator Jorge Lins.
Chegamos, eu, Wanderlei de Jesus e Márcio Lincon na arena do Canta Nordeste montada na praia de Boa Viagem e por coincidência, a Amorosa estava no palco ensaiando o Coco da Capsulana. Ao ouvir, logo achei estranha a forma de interpretação. Quando encerrou o ensaio, Amorosa desceu muito chateada, informando que a banda não conseguia dar o swing necessário e que estava complicado cantar. Ela pediu para ver a possibilidade de trazer o sanfoneiro Waltinho e o baterista Bauru, que eram da banda dela e músicos da nossa banda base na eliminatória.
Achei justa a solicitação e como coordenador artístico fui conversar com o Raposo, que nos recebeu muito bem no backstage, elogiando a nossa eliminatória, parabenizando a equipe e outros agrados… Aproveitei o momento e solicitei a ele, para uma melhor performance das nossas músicas, a permissão de chamar o nosso sanfoneiro e o baterista, que iriam tocar nas nossas duas músicas.
Amigos, nunca tomei uma chamada e esporro tão grande na minha vida! O homem parecia uma fera, dizendo aos berros “Quem manda aqui sou eu”. Assustado, ouvi todo o resto do carão. Ele gritava que o festival era dele e que ninguém modificaria nada, e se não estava gostando era só sair. Disse o que quis, deu as costas e foi embora. Fiquei ali, parado sem reação e com todo mundo me olhando. Aí amigos, vem o início de uma amizade que durou até a sua morte em 2005, após o acidente de carro.
Pedi ao Jesus e ao Márcio que fossem para o hotel e que depois eu iria. Jesus ficou preocupado, mas eu disse para ele que estava tudo bem. Eu não era funcionário da TV Sergipe e eles eram. Esperei até o momento do início do ensaio do Gil Castro sentado junto a ele. Quando foi chamado, não permiti que o mesmo subisse ao palco. Foi uma confusão danada! Chamavam e ele não subia, até que apareceu o “supremo poderoso” do festival. A antes que ele abrisse a boca, descarreguei toda a metralhadora de palavras que pude:
– Você manda nas suas negas. E antes que me esqueça, vá gritar com a P.Q.P. O seu festival só vai ter 16 músicas!
Claro que sabia que não tinha o poder de decisão da nossa participação e, claro, ele também sabia. Também disse que ele estava copiando uma boa parte do nosso festival e a única coisa que eu queria era as músicas da minha terra muito bem representada para assim abrilhantar o festival dele.
O mais surpreendente é que ele ouvia calado e abismado com a afronta. A resposta foi mais surpreendente ainda. Ele me disse aos berros:
– P.Q.P! Manda vir logo esses músicos…
Deu as costas e saiu. A noite veio e Raposo me convidou para ser um dos jurados do festival, a terceira vitória de Sergipe.
Os músicos chegaram e deram um show, classificamos as duas músicas para a final com Amorosa recebendo nota 10 de 98% dos jurados e Gil Castro com uma apresentação muito boa, também chegou a final.
Na final, Coco da Capsulana ficou em Segundo Lugar, como Melhor Intérprete a cantora Amorosa e como Melhor Arranjo, Valtinho do Acordeon. Até hoje, a música e a intérprete mais lembrada da história do Canta Nordeste é de Sergipe! Tem uma declaração do grande Tom Zé, jurado da final, que diz “Não gostei de quase nada, mas para ser justo, a mulher do Coco de Sergipe é o cão danado”, a quarta vitória de Sergipe.
Eu ganhei o respeito do Raposo e sua amizade, além de ser convidado para trabalhar com ele na coordenação geral do festival, pleito que não aceitei, pois, dois bicudos não se beijam.
Mas, nada nesse estado fica impune. Aqui, temos que ser submissos e é um crime brigar pelo nosso estado. Quando o novo diretor, Antônio Goes da TV Sergipe, soube que peitei o diretor-geral de programação da Rede Globo nordeste, diferentemente da atitude do Raposo, ele pediu a minha cabeça e perdi o trabalho na coordenação artística do festival. Era um cahet muito interessante para a época.
*Neu Fontes*
Cantor, Compositor, Produtor, Publicitário e Gestor Cultural e
Presidente do Instituto Helvio Dória