Inquietude da vida inteira, não causou surpresa o cansaço de Zé Fernandes em frequentar o Bar da Angélica, no Inácio Barbosa. Motivos para o abandono ele arranjou de sobra, o que não convém trazer à baila. Voltou a aparecer na Confraria do Cajueiro, ali perto. Estimulou-me a lançar, em sua companhia, o livro “Algumas histórias de minha infância (e adolescência)” numa tarde de sábado. Enquanto eu autografava o livro, ele punha à venda camisas com pinturas suas. Um sucesso.  Chegou, inclusive, a pintar um quadro de grandes dimensões à vista do numeroso público. Adiante, organizou naquele espaço o lançamento, em tarde também muito concorrida, do DVD do seu amigo Erivaldo de Carira. Mais: viabilizou a presença luxuosa de Mestrinho, filho de Erivaldo, um talentoso jovem que se vem firmando no Sul como um dos grandes sanfoneiros do país (trabalhando com Gilberto Gil, Elba e outras feras).

Do ponto de vista pessoal, vem Zé tomando decisão sensata: pensa em deixar de dirigir. Mas como continuar trabalhando no “escritório”? Ora, logo encontrou a solução: o bar e restaurante Parada Oriental, a cerca de 30 ou 40 metros de casa. Mais uma vez, consolida o papel de aglutinador e passa ali a receber a legião de amigos: músicos, poetas, boêmios, pintores, escritores, comerciantes, servidores públicos. Risonhos, Gil e Sandra, os proprietários, pensam em ampliar o toldo para abrigar melhor a nova e diversificada clientela. O próprio Zé cuida de divulgar o local e desperta a curiosidade de muitos que veem suas postagens nas redes sociais.

Nas primeiras horas deste ano (2016), provocou-me o traste um tremendo choque: noticiava o WhatsApp o falecimento do meu amigo. Dizia o texto, postado à 23h40 da noite anterior: “não poderia haver início de ano mais triste para a cultura sergipana. Morreu nesta noite o artista plástico José Fernandes, um dos mais importantes nomes da pintura contemporânea em Sergipe. Os amigos estão consternados com a perda”. Logo abaixo, uma foto de José Fernandes no caixão, com o velho chapéu na cabeça (Ismar Barreto também fora velado com o inseparável panamá), camisa branca e mãos cruzadas sobre o peito. Verdade que o morto parecia se esforçar em conter um sorriso, mas, paciência, Zé sempre teve essa “velha cara safada” de quem vive à cata de rir de si e dos outros. Certamente, teria falecido pensando em algo jocoso, e brincado com a morte. Provável que se tivesse recordado de alguma das mortes do velho Quincas Berro D’ água e não quisesse fazer feio. Sempre fora de rememorar tempos que passara na Bahia, onde fizera amizades com o pessoal das Artes. Tudo teria feito para merecer, no além, a boa companhia do velho boêmio baiano. Quem sabe, no instante da foto já estivessem degustando umas “loirinhas”, e se rissem da nossa pasmaceira, ainda presos no vale de lágrimas.

Superando com esforço o baque, entrei em contato com o cantor e compositor Paulo Lobo (sabê-lo-ia, bem depois, cúmplice da empreitada). A resposta foi tranquilizadora: mais uma patacoada do Zé. A foto fora tirada na noite anterior. Recebendo um amigo que possui funerária, Zé perguntou se havia algum caixão no carro. O esquife foi colocado no chão em frente à Parada e o grandalhão nele se acomodou.

Choveram telefonemas de gente conhecida. E eu, agora aliviado e satisfeito, desmentia a notícia de mau gosto. A consternação era geral. À tarde, ante meu protesto contra a infeliz galhofa, o artista cria, com a conhecida entonação teatral, mil razões, que me levam a rir: um protesto contra o abandono da cultura sergipana, contra o caos instalado no país, um repúdio aos rumos da economia, um grito de alerta contra as pessoas pífias, contra os pela-porcos etc. etc.

Noutro momento, já mais comedido, libera uma gargalhada e justifica: “fiz isso para dar uma sacudidela nesse marasmo em que vivemos. Nada acontece nesta terra!!!. Foi uma das coisas mais certas que fiz ultimamente”.

Para comemorar a ressureição e estremecer a quietude, nada mais oportuno que uma tarde regada a alguns engradados de cervejas, umas doses de uísque (do declamador Ventura) e comedidos copinhos da cachaça (com sabor de aniz) bem branquinha – que Edgard do Acordeom traz no carro para ser degustada em ocasiões para lá de especiais. A rodada gastro-etílica-musical, iniciada às 13 h, estendeu-se, era de se esperar, noite adentro. Uma maravilha. Pudemos apreciar o rico cancioneiro nacional (Cartola, Orestes Barbosa, Alceu Valença, Zé Ramalho, Gonzagão, Ednardo etc, sem descuidar de preciosidades locais e de relembrar indeléveis boleros).  Músicos e cantores de primeira linha se revezavam: Russo, Zé Andrade, Paulo Lobo, Sílvio Rocha, Edgard, o talentoso Assum Preto (cego, esparge contagiante alegria, enquanto canta e toca vários instrumentos), Álvaro e muitos outros. Entre um copo e outro, podia-se admirar a sólida amizade entre Edgard e Assum Preto. E a comovente solicitude do artista plástico Fox em conduzir Assum ao sanitário, servir-lhe a cevada, levá-lo para fumar longe do aglomerado de mesas (foram mais de duas dezenas de amigos). Violões, sanfona, timbau e instrumentos artesanais (fabricados na hora, com copos ou latas de refrigerantes preenchidos parcialmente com grãos de arroz) criavam o fundo musical para o desfile de várias vozes (profissionais a amadoras). Tudo sob o olhar gratificado do surpreendentemente silencioso (respeito às apresentações?) “maestro” Zé Fernandes. A feijoada foi 0800, ofertada pelos donos da casa. O caldinho de feijão exigindo “replay”. O memorável dia? 24 de janeiro de 2016, um domingo. Onde? Na Parada, evidentemente. O servidor público Reginaldo, o empresário Paulo Vasconcelos e o jornalista Gilson Sousa não me deixam mentir. Assim se deu mais um dos eventos culturais promovidos pelo artista plástico Fernandes. Zé é (como Inácio era), um artista genuíno. Bendita loucura dos dois. Amém.

Marcelo Ribeiro